Com Davi foi assim. Aos doze,
nada podia enxergar. O que via era luz. O que pensava era luz. Ninguém tinha
razão. Nada fazia sentido. Pensava ele que o seu problema se resolveria algum
dia, mas que isso iria acontecer de repente. Ninguém iria ajuda-lo. Aliás,
todos que quiseram ajuda-lo foram completamente banidos de sua vida. A cegueira
de Davi parecia ser mental.
Esse menino, brasileirinho, de
família mista, com pais separados, jovenzinho dos anos 2000, com carinha de
criança, de menino puro, de voz fina e apressada, com um amigo fiel, o Dedé,
acreditava que a sua cegueira abarcava o bem e o mal. Mas como assim? Como
discernir o bem e o mal se não se pode ver nenhum dos dois? É mesmo verdade que
“o que os olhos não veem o coração não sente”?
Davi, então, consultava seu fiel
amigo Dedé, que parecia mais ser um oráculo. Dedé era mais velho. Pouco mais
velho. Acredito que uns seis ou sete anos mais velho, recém-estudante
universitário e com outra mentalidade, e, apesar da pouca idade, mais
experiente que Davi.
- Dedé, quando eu vou conseguir
enxergar o mundo, hein? Perguntava Davi, ansioso e cheio de esperança, mesmo
estando em uma gangorra. Sim, numa gangorra! Ele queria, mas não queria
enxergar. Poderia ser perigoso demais saber a verdade, a realidade um tanto
cruel.
- Davi, você tem que entender que
as coisas não são assim. Você vai enxergar. Uma hora, pode acreditar, você vai
enxergar... Com a paciência de um monge, Dedé incentivava o amigo a ter calma,
a esperar.
O imediatismo da adolescência é
normal, é comum. Os mais velhos, às vezes, perdem a paciência, mas acabam
entendendo. E repetem aquele jargão que nenhum jovem gosta de ouvir e acha um
saco: “Eu também já fui assim. Na sua idade eu era assim.” Blá, blá, blá de
gente mais velha...
Dias, semanas, meses, anos. O
tempo passava depressa, e Davi não aguentava mais não poder enxergar. Há muito
que ele esperava o momento em que poderia ver. Mas tomou uma decisão! Saiu da
inércia e tomou uma decisão. Demorou, é bem verdade, mas teve de pensar muito
antes de se decidir. Afinal, enxergar não era uma coisa simples. Não é. Nem pra
Davi nem pra ninguém.
Já quase aos vinte e um, Davi
percebeu que o esperado momento se aproximava. Vestiu uma bermuda cargo antiga,
uma camisa verde com a imagem de um violão branco e calçou os chinelos. Aquela
manhã carioca de sol completava a vontade de Davi para descobrir que poderia
enxergar. Desceu um pouco apreensivo pelo elevador e, ao chegar à portaria do
seu prédio, passou feito um furacão. Caminhou em direção à praia. Era lá que
queria ver a verdade. Foi ver o mar. Olhou por minutos. Dez ou um pouco mais.
Dali em diante, disse a si mesmo que iria enxergar. Seus olhos abertos não
serviriam mais somente para desviar de obstáculos e admirar belas pessoas e
paisagens. Davi logo se lembrou de um poeta que havia escrito um bonito verso: “bobeira
é não viver a realidade”.
A cegueira nada mais era que a
vontade de não ver o que machucava. Mas quando se é maduro e se deseja
enfrentar a vida, o primeiro passo é enxergar. Enxergar o bom e o ruim, o bem e
o mal, a realidade, as bobeiras, até as bobeiras da realidade...