segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Cego por querer

Era cego. Nada mesmo enxergava. Ficou cego bem cedo, por volta dos catorze anos. Doze, creio eu... A partir disso, foi mais complicado viver. Óbvio! Enxergar permite ao homem viver a realidade. E ao viver esta, o homem consegue optar pelo que quer e o que não quer, pois, se enxerga, sabe o que existe de bom e mau para si mesmo. Mas a cegueira blinda. A cegueira cega. Claro! Óbvio! A cegueira leva à fantasia que cada um escolhe para si. Mas enxergar é relativo. A visão é dada a todos, mas nem todos fazem questão de usá-la. Alguns não a têm e lamentam por isso. Outros conseguem ver tudo, mas só enxergam mesmo o que querem. Para o que não querem, mantêm os olhos sempre vendados.

Com Davi foi assim. Aos doze, nada podia enxergar. O que via era luz. O que pensava era luz. Ninguém tinha razão. Nada fazia sentido. Pensava ele que o seu problema se resolveria algum dia, mas que isso iria acontecer de repente. Ninguém iria ajuda-lo. Aliás, todos que quiseram ajuda-lo foram completamente banidos de sua vida. A cegueira de Davi parecia ser mental.

Esse menino, brasileirinho, de família mista, com pais separados, jovenzinho dos anos 2000, com carinha de criança, de menino puro, de voz fina e apressada, com um amigo fiel, o Dedé, acreditava que a sua cegueira abarcava o bem e o mal. Mas como assim? Como discernir o bem e o mal se não se pode ver nenhum dos dois? É mesmo verdade que “o que os olhos não veem o coração não sente”?

Davi, então, consultava seu fiel amigo Dedé, que parecia mais ser um oráculo. Dedé era mais velho. Pouco mais velho. Acredito que uns seis ou sete anos mais velho, recém-estudante universitário e com outra mentalidade, e, apesar da pouca idade, mais experiente que Davi.

- Dedé, quando eu vou conseguir enxergar o mundo, hein? Perguntava Davi, ansioso e cheio de esperança, mesmo estando em uma gangorra. Sim, numa gangorra! Ele queria, mas não queria enxergar. Poderia ser perigoso demais saber a verdade, a realidade um tanto cruel.

- Davi, você tem que entender que as coisas não são assim. Você vai enxergar. Uma hora, pode acreditar, você vai enxergar... Com a paciência de um monge, Dedé incentivava o amigo a ter calma, a esperar.

O imediatismo da adolescência é normal, é comum. Os mais velhos, às vezes, perdem a paciência, mas acabam entendendo. E repetem aquele jargão que nenhum jovem gosta de ouvir e acha um saco: “Eu também já fui assim. Na sua idade eu era assim.” Blá, blá, blá de gente mais velha...

Dias, semanas, meses, anos. O tempo passava depressa, e Davi não aguentava mais não poder enxergar. Há muito que ele esperava o momento em que poderia ver. Mas tomou uma decisão! Saiu da inércia e tomou uma decisão. Demorou, é bem verdade, mas teve de pensar muito antes de se decidir. Afinal, enxergar não era uma coisa simples. Não é. Nem pra Davi nem pra ninguém.

Já quase aos vinte e um, Davi percebeu que o esperado momento se aproximava. Vestiu uma bermuda cargo antiga, uma camisa verde com a imagem de um violão branco e calçou os chinelos. Aquela manhã carioca de sol completava a vontade de Davi para descobrir que poderia enxergar. Desceu um pouco apreensivo pelo elevador e, ao chegar à portaria do seu prédio, passou feito um furacão. Caminhou em direção à praia. Era lá que queria ver a verdade. Foi ver o mar. Olhou por minutos. Dez ou um pouco mais. Dali em diante, disse a si mesmo que iria enxergar. Seus olhos abertos não serviriam mais somente para desviar de obstáculos e admirar belas pessoas e paisagens. Davi logo se lembrou de um poeta que havia escrito um bonito verso: “bobeira é não viver a realidade”.

A cegueira nada mais era que a vontade de não ver o que machucava. Mas quando se é maduro e se deseja enfrentar a vida, o primeiro passo é enxergar. Enxergar o bom e o ruim, o bem e o mal, a realidade, as bobeiras, até as bobeiras da realidade...

sábado, 8 de dezembro de 2012

Encruzilhada



José Mário. Esse é um nome comum. Talvez não seja tão comum quanto os outros nomes que passaram pelo caminho desse homem. Aliás, homem comum no Rio de janeiro: advogado, descendente de portugueses, branco, com barba feita, corpo regular. 47 anos, corpo de 35, homem bem cuidado. Seus bonitos cabelos lisos, mafiosamente penteados e grisalhos e seus olhos glaucos combinavam com seus bonitos ternos e chamavam atenção dos olhares femininos e masculinos. Olhares, porém, vazios.

O ano era 2010 e José Mário trabalhava na cidade do Rio de Janeiro. Advogado experiente – 23 anos de formado -, laborava em um escritório no centro da cidade, na Rua São José. De segunda a sexta, tinha de atravessar a famosa Avenida Rio Branco, onde passam milhares de pessoas todos os dias. Pessoas e olhares. José Mário, homem comum, seguia ao trabalho e passava por Juliana, por Carol, por Daniele, por Eduardo, por Luiza, por Carlos, por José, por Jairo, por Maria, por Alessandro, por Cláudia e por muitas outras pessoas comuns. Os olhares eram trocados, é claro. Muitas vezes, os olhares duelavam por alguns segundos e milésimos. Minutos não eram passíveis de uso, pois a quantidade de informação visual e auditiva complicava a vida das pessoas. O sol carioca dava vida ao cinza e ao colorido da cidade. Tudo acontecia com muita rapidez. Nos tempos modernos, praticidade é algo de suma importância.

Mas José Mário, devido a alguns motivos pessoais, às vezes, olhava de forma muito firme. Como homem educado, porém viril e sério, não detinha todos os olhares pelos quais passava. Admirava as belas mulheres da cidade, mas tudo era um caos comumente ordenado, engolindo o tempo de contemplação das pessoas. Todos deviam produzir. Era possível fazer qualquer coisa, desde que se estivesse produzindo ao mesmo tempo.

Em dias mais calmos - e raros -, José Mário atravessava a tão famosa e movimentada Avenida Rio Branco. Mais um bocado de pessoas e olhares. Esse experiente homem se perguntava o porquê de, mesmo em dias mais serenos, não conseguir fixar o seu olhar ao de outrem. Por que só conseguir admirar as bonitas mulheres, as moças do centro? Por que não começar uma conversa com outro olhar?

José Mário lembrara-se que um dia, escutou de uma sábia e experiente professora da sua graduação que, despachos e oferendas não eram colocados às encruzilhadas por acaso. Era nas encruzilhadas que os destinos se esbarravam, se cruzavam. Por isso deixar os despachos nesses lugares.

Parou de se perguntar o motivo de não conseguir encaixar os outros olhares ao seu. Entendeu que nada iria acontecer de forma forçada, montada. Entendeu por que, ao atravessar ruas tão movimentadas, passava ao lado de muitas pessoas, mas nada parecia fazer sentido. Eram simples olhares no meio da multidão. Simples olhares que estavam ali por acaso. Teve de gastar alguns poucos minutos, dois ou três, e entender que olhares e destinos, quando têm que se encontrar, fazem de qualquer rua suas encruzilhadas.